O Jogo que Começa no Apito Final

18/10/2025

     Quem és tu? Sentes-te confortável em descrever-te? Em listar as tuas principais capacidades e fragilidades de forma clara? Como é estar diante de pessoas que falam sobre ti? A tarefa que parece simples em teoria, geralmente não o é na prática. E se... recebesses, uma ou duas vezes por semana, milhares — ou mesmo milhões — de comentários e análises sobre as tuas competências e os teus erros? Junta a isso um ambiente com milhares de decisões tomadas em segundos e uma exposição imediata a pessoas convictas de que percebem imenso do que fazes. Quem és tu, afinal?

     Jogar futebol em alto nível exige, entre muitas competências, a capacidade de tomar decisões com extrema rapidez. E não são poucas: estudos indicam que um jogador toma entre mil e quinhentas e duas mil e quinhentas decisões por jogo. Ou seja, em média, pelo menos uma decisão a cada quatro segundos — sendo que algumas podem ser determinantes no resultado da partida (para o bem ou para o mal).

     A tudo isto soma-se outro fator que potencia o desafio: a exposição de cada uma dessas decisões. O futebolista sabe que será avaliado de forma contundente, analisado em todas as nuances possíveis, submetendo-se a um verdadeiro escrutínio público. Logo, aqui já temos duas competências exigidas: a capacidade de decidir e a de lidar com a imensa exposição das decisões tomadas.

     É facto que profissionais em posições de grande relevância, exigência e/ou poder podem sentir-se pressionados pelas decisões que precisam de tomar - mas isso faz parte do cargo ou da função de destaque. Contudo, geralmente essas decisões não são avaliadas de forma instantânea, tampouco por milhares de pessoas que se consideram especialistas no assunto. Ou seja, no caso dos futebolistas, somam-se três fatores: a grande quantidade de decisões em curtíssimos espaços de tempo; a exposição imediata dessas decisões; e a exposição a um vasto público que se considera legítimo conhecedor do tema.

     E não ficamos por aqui. Além destes três fatores, é preciso incluir a distorção nas análises, provocada pela diferença entre o tempo do lance e o tempo da análise do mesmo lance. Imagens em câmara lenta — repetidas inúmeras vezes — são capazes de gerar um cenário nada fiel à “cena real”, na qual tudo se passa em questão de segundos. Recorre-se a uma imagem “parada” para interpretar um instante de extrema velocidade. Entretanto, o jogador decidiu e atuou em tempo real. Ou seja, é avaliado por uma jogada que não foi exatamente aquela vivida no relvado.

     Alguns consideram exagerado dizer que isso altera tanto a perceção, defendendo que a análise deve ser o mais detalhada possível para ser fiel à situação original. Argumento legítimo, mas aplicado ao fenómeno errado.
Um lance de futebol não é uma experiência de física, em que se decompõe uma ação em “frames” para compreender perfeitamente o que ocorreu.

     No futebol, essa relação é inversa: um lance exige interpretação, e a velocidade dos movimentos interfere diretamente nessa leitura. Se a imagem é abrandada, a interpretação pode mudar. Importa esclarecer que a questão aqui não é o que é certo ou errado (nem uma defesa ou crítica ao uso do VAR), mas sim o facto de que se atua com uma régua e se é avaliado com outra.

     Chegamos, assim, à complexidade do cenário com o qual o futebolista se depara ao lidar com avaliações sobre a sua performance: centenas de decisões tomadas em curtíssimos espaços de tempo, avaliações instantâneas, participação de milhares de pretensos “especialistas” e análises distorcidas por uma temporalidade completamente diferente.

     E como isso pode ser mudado ou atenuado para o futebolista? Do ponto de vista do ambiente externo, esta definitivamente não é uma alternativa viável. Não é algo passível de mudança. Pelo contrário, a tendência é a ampliação dessa situação, com mais tecnologia, mais interatividade e análises cada vez mais imediatas, com imagens e sensores por todo o lado. Ou seja, o cenário é de pressão crescente sobre os atletas.

     Os adeptos, a comunicação social e o seu público procuram e alimentam-se dessa verdadeira montanha-russa de emoções e opiniões. Não querem emoções “apenas” durante os noventa minutos ou nos dias de jogo — querem conteúdo para todos os outros dias também! Nada de errado nisso: é isso que move toda a “máquina” do futebol. Mas, quando olhamos sob a ótica do futebolista, aquilo a que chamamos aqui de montanha-russa emocional está longe de ser algo simples ou trivial. Pode ser devastador para o equilíbrio psicológico do atleta.

     O árbitro apita para o final do jogo. O jogador sai do relvado carregando a responsabilidade pelas decisões que tomou, já com o trabalho de análise de tudo o que ocorreu na partida, junto aos colegas e à equipa técnica — o que, por si só, já representa uma grande exigência. Mas ainda há um “prolongamento”: enquanto procura descanso e recuperação física após a partida, o futebolista entra num processo de intensa atividade mental e emocional para processar não apenas o que viveu, mas também como a sua atuação foi avaliada.

     Corpo em repouso e mente ativa — um trabalho solitário, silencioso, difícil, em parte inconsciente, diante do turbilhão mental e emocional. Solitário, mesmo rodeado de pessoas próximas, pois estas, ainda que bem-intencionadas, muitas vezes reforçam vieses de confirmação ou trazem novas informações sobre análises — o que pode gerar ainda mais turbulência. O ponto é: as opiniões ao redor nunca substituem nem reduzem a necessidade e a importância da elaboração interna do próprio atleta.

     Se a construção e consolidação de uma carreira profissional bem-sucedida exige planos relativamente estáveis e um elevado nível de autoconhecimento, o ambiente do futebol oferece a condição oposta. O grande desafio do futebolista pode não ser o “caos” dentro das quatro linhas — para esse, sempre recebe suporte, orientações e técnicas, além das suas capacidades individuais e treinos bem elaborados. O grande desafio pode estar no caos fora dos relvados, para o qual geralmente não foi preparado — e, muitas vezes, nem consegue compreender claramente o que o pode afetar.

     Numa comparação simples, a preparação física evoluiu de tal forma que hoje um futebolista corre, em média, entre vinte e quarenta por cento mais por jogo do que nas décadas de 70 e 80. Essa maior exigência física veio acompanhada de avanços nos métodos de treino, na fisiologia, na nutrição e na biomecânica, entre outros. E na dimensão mental e emocional? Será que o repertório de apoio psicológico acompanhou os imensos desafios surgidos?

     Aqui temos um forte paradoxo. O futebol tornou-se, dentro de campo, um jogo cada vez mais coletivo e, fora dele, um desporto cada vez mais interativo... enquanto o futebolista passou a sentir-se mais solitário e, ao mesmo tempo, mais exposto. O canto dos adeptos, as análises por todo o lado, as vozes das redes sociais podem ser inspiradoras, sim, mas apenas quando há força e equilíbrio internos para filtrar e processar todo esse conteúdo. O caminho para fortalecer-se e lidar com este desafio de forma consistente não está disponível em referências “externas” — sejam elas sociais, coletivas ou mesmo fórmulas prontas.

     A referência para o equilíbrio está na própria história pessoal: em saber quem se é. Não naquele clube, naquela época, naquela categoria. Quem se é na trajetória única pelo desporto e, mais ainda, pela vida. Origens. Heranças simbólicas. Conteúdos tão bem guardados que acabaram esquecidos. Um trabalho que não responde ao imediatismo dos “cliques” nas redes sociais nem aos golos marcados nos descontos. Um trabalho fora da lógica binária das grandes penalidades. Um trabalho sem cartões amarelos ou vermelhos. Um trabalho sem o receio da opinião do mister. Um trabalho sem a pressão da jogada perfeita. Um trabalho sem as vozes e os cânticos dos adeptos. Um trabalho sem o apito do árbitro.

     Construir e escrever a própria história. O futebolista é, na verdade, o seu próprio Clube — aquele pelo qual vive e joga todo o tempo.

Caso queira conhecer mais sobre este trabalho, teremos gosto em partilhar mais informações e conversar consigo sobre o tema.